Em 1971 não se afundou apenas uma aldeia inteira. No fundo das águas do rio Homem não jazem apenas paredes graníticas e campos outrora verdejantes e cultivados. Ali, estão submersas memórias de um povo que vivia em comunidade e partilhava tudo. Hoje, partilham o sentimento de tristeza por já não terem a sua Vilarinho da Furna.
No dia 1 de janeiro de 1971, flocos de neve caíam suavemente sobre os telhados desta aldeia, perdida entre as serras do Gerês e Amarela. Manuel Antunes lembra-se bem desse dia. E, se não se lembrasse, sempre teria as centenas de registos fotográficos que tem dos últimos dias que passou na aldeia.
Manuel Antunes, professor reformado da Universidade Lusófona e sociólogo, nasceu e cresceu naquela pequena aldeia da freguesia do Campo do Gerês, situada no extremo nordeste do concelho de Terras de Bouro, até aos 12 anos, altura em que foi estudar para Viana do Castelo. Contudo, continuava a visitar a aldeia sempre que possível, principalmente na altura das férias do Natal, da Páscoa e durante os três meses de verão.
Naquele primeiro dia do ano de 1971, Manuel Antunes, com cerca de 20 anos e já a viver e a estudar Filosofia em Lisboa, aproveitou as férias de Natal para visitar uma tia que ainda lá vivia e despedir-se da aldeia antes de esta se perder para sempre nas águas da albufeira.
“Vi o desmontar das casas, tirei umas fotografias, trouxe também alguns objetos para o museu e viemos embora no dia 2. Fomos as últimas pessoas de Vilarinho a sair de lá no dia 2 de janeiro de 1971”, contou em entrevista à EscapadaRural.
A barragem de Vilarinho das Furnas acabaria por ser fechada em fevereiro de 1971, mas só foi oficialmente inaugurada a 21 de maio de 1972.
“Um museu para evocar uma aldeia submersa”
Manuel Antunes, agora com 70 anos, é um dos maiores guardiães da memória de Vilarinho da Furna, antes mesmo da barragem ter sido construída. “Quando foi decidido construir a barragem, em 1967, eu lancei a ideia de criar o Museu Etnográfico de Vilarinho da Furna”, recorda. Uma ideia que classifica de “mirabolante”, mas que permite hoje em dia não esquecer a extinta aldeia comunitária.
Foi também ideia do sociólogo levar algumas das casas de Vilarinho da Furna para construir o próprio museu, que foi inaugurado em 1989 e pode ser visitado a poucos quilómetros da aldeia, na sede da freguesia, Campo do Gerês. “O fundamental do museu são as próprias casas trazidas de Vilarinho”, afirma.
O Museu Etnográfico foi construído com as pedras de duas casas de Vilarinho da Furna e a capela da aldeia foi utilizada para construir as fundações do edifício. “Foi a maneira que eu encontrei na altura para manter a memória de Vilarinho”, explica Manuel Antunes, acrescentando que não há nenhum outro lugar no mundo que tenha “um museu para evocar uma aldeia submersa”, com a exceção do Museu da Luz, construído em 2003 para recordar a Aldeia da Luz.
Mas, ao contrário da Aldeia da Luz, submersa pelas águas da barragem do Alqueva, em 2002, em Vilarinho da Furna não se fez nenhuma aldeia nova para onde as pessoas pudessem ir. “Para que é que interessava uma aldeia quando tinham tirado os campos, que era a principal fonte de rendimento”, argumenta Manuel Antunes.
“A mais perfeita expressão da democracia”
As cerca de 250 pessoas que viviam na aldeia dispersaram-se pelas várias terras dos concelhos de Braga, Viana do Castelo, Ponte da Barca, Ponte de Lima, Barcelos, Vieira do Minho, Terras de Bouro, onde encontraram novas gentes, novos costumes. Mas onde também se perdeu a vida comunitária de Vilarinho da Furna.
O sistema comunitário de Vilarinho resistiu ao avançar dos séculos, mesmo quando essa forma de viver caía em desuso na Europa.
A população da aldeia organizava encontros semanais – geralmente às quintas-feiras -, onde os representantes das várias famílias da povoação analisavam, até à exaustão, os problemas que a todos diziam respeito, e se decidiam, por vontade expressa da maioria, as soluções a adotar.
Para Manuel Antunes, “a Junta era a mais perfeita expressão da democracia”. Mesmo durante o Estado Novo, Vilarinho da Furna sempre viveu em democracia e as mulheres votavam desde o século V. “Se representava a família, votava, quer fosse homem ou mulher”.
O chefe da comunidade – conhecido como Juiz ou Zelador – era totalmente independente das autoridades administrativas oficiais e era obrigatoriamente escolhido para um período de seis meses, entre os homens casados da Junta, de acordo com a ordem cronológica dos casamentos.
Um mergulho em Vilarinho da Furna
Manuel Antunes guarda muitas memórias da sua infância na aldeia, algumas das quais estão registadas nos quatro livros que escreveu sobre Vilarinho da Furna e nas fotografias expostas no museu etnográfico. Mas guarda “essencialmente uma emocionante revolta”, porque as famílias receberam muito pouco.
“As famílias receberam, sem contar as casas, uma média de meio escudo por cada metro quadrado. Uma sardinha já custava um escudo”, compara. Assim, a Companhia Portuguesa de Eletricidade (antecessora da EDP) pagou pela aldeia toda cerca de 20 mil escudos, o que seriam cerca de 100 mil euros hoje em dia.
Foi um momento difícil para as 57 famílias que viviam em Vilarinho da Furna. “Pagaram pouco e só começaram a pagar em setembro de 1969 e depois deram um ano para as pessoas saírem de lá. Foi uma situação muito complicada”, explica o sociólogo.
Apesar de tudo, os habitantes da aldeia foram-se adaptando e hoje atenuam as saudades visitando o museu e a aldeia quando o nível da água o permite. Também foi criada em 1985 a Associação dos Antigos Habitantes de Vilarinho da Furna (AFURNA) com o objetivo de preservar, promover e estender no tempo a memória da aldeia.
“A aldeia está debaixo de água, tudo bem, mas a gente vai procurar rentabilizar o melhor possível”, assume Manuel Antunes. Para isso, foi ainda criado o Museu Subaquático de Vilarinho da Furna, em 2001, em parceria com a empresa de animação turística Cavaleiros do Mar, sediada em Viana do Castelo. Com máscaras, barbatanas e botijas de ar comprimido é possível nadar entre as ruínas, entrar nas casas e explorar a aldeia de uma perspetiva diferente.
Enquanto que alguns gostam de mergulhar na aldeia submersa, a maioria gosta de ver Vilarinho da Furna completamente a descoberto e andar pelo meio das ruas como se a barragem nunca tivesse sido construída e a aldeia numa tivesse sido apagada.
Apesar da seca que se faz sentir em Portugal atualmente, a aldeia de Vilarinho da Furna ainda permanece debaixo de água, mas “já se vê o topo de algumas casas”, conta o sociólogo com entusiasmo.
Este fenómeno vai acontecendo de tempos a tempos e é uma alegria para quem lá deixou as memórias enterradas. “A gente mata saudades. É um momento para a gente se encontrar”, diz Manuel Antunes na esperança de ver a sua aldeia em breve, se o rio Homem o permitir.
7 aldeias submersas e apagadas do mapa de Portugal
Reunimos 7 aldeias portuguesas que já só poderá visitar nas memórias guardadas de quem lá viveu ou então através de fotografias. Se passar por lá quando o nível da água for baixo, poderá até ter a sorte de ver as ruínas de algumas aldeias que ficaram submersas.
1 comentário
As botijas não são de oxigénio mas sim de ar comprimido.